sábado, 20 de julho de 2024



                                 começar de novo




Tudo o que finda, de um jeito ou de outro, 

um dia retorna.

Sou o que sou, não me perguntem por que.

Sei que cada instante pode ser o último, mas evito pensar

no inexorável.

Minha fé em Cristo me faz acreditar que sobrevivo

para cumprir tarefas inacabadas. 

Me vejo verdejante, jorrando como uma fonte perdida,

feliz como um bêbado dentro da noite.

Quem sou não importa. Não importa o que passou

nem o que virá. 

Vivo o presente que ergue-se, inocente, para começar

tudo de novo. 

As águas iluminadas se deixam possuir, sedentas.

Assim será a nova vida.

Para colher o que foi esquecido.


Tudo o que finda, de um jeito ou de outro, um dia retorna.

Quando a vontade de chorar chega

e o negro momento do arrependimento arromba

a porta do esquecimento.

O ontem sempre será presente.

Para o ajuste de contas, romper

os calmos vesperais.

As vicissitudes exauridas movem-se em meio

ao gris das fadigas.

Tudo o que finda um dia retorna, quando 

a origem de tudo 

regressa à sua própria origem.






sexta-feira, 19 de julho de 2024

 

                       demência





O frio castiga, o calor fustiga.

Enquanto o povo passa, o frio e o calor

embotam os dias.

Ao meio-dia o boia-fria dorme o sono

dos justos.

A noite ninguém sabe onde tudo começa e termina.

Estagnado no ato, o cortejo das prostitutas inventa

a fundura dos gemidos.

O endiabrado e o ensanguentado se convertem

à luz dos fatos caricatos.

Inversão de valores coabita o nascedouro 

das máquinas sem juízo.

Onde o perdido e o triste abarcam a pontual oratória,

já sem vida, o ovo e o olfato

transformam-se em dinheiro.

O que impede o animal de gozar ?

O gozo espiritual é herege ?

Distrações lunares intercedem a favor dos

anacoretas.

A sede de ignorância é maleável.

Minhas verdades perderam a data de validade.

Nem a tília nem o lilás matam a fome de razão.

A loucura engrandece a demência,

para que a vida afunde, iracunda e banal.





quinta-feira, 18 de julho de 2024



                   molduras vazias





A medida que o tempo passa, as perspectivas 

e expectativas

retroagem alheias às molduras vazias.

Os horizontes se estreitam, em meio a pedaços 

de promessas e memórias.

A fronteira entre o ser e o ter encadeia virtudes

evanescentes. 

No fim das contas, tudo gira em função do dinheiro.

Há que pôr comida na mesa.

Há que suprir, arcar, satisfazer.

Sem o quê não nada somos.

Sem o quê o rio feroz escoa pelo esgoto.

Os abraços reprimidos herdarão o choro dos renegados.

Desmoronam os cacos do presente imunes ao recital

de danos.

Sofremos mas resistimos.

A velha trama arquiteta o cio dos muros, imprudente

e hipocondríaca. 


 






                                   debuxos




O armário implode os requisitos da festa.

O coelho sai da toca sem o suspensório.

Enquanto o sol desce a ladeira, esbaforido. 

Certa vez o verão ficou nuvem, mas não chovia.

Muito tempo se passou desde então.

Não perguntei porque não sabia, era apenas curiosidade

pela demora do carteiro.

Quando, enfim, minha mãe se desvencilhou de mim,

era para não ter voltado, aliás, acho que não voltei.

Ao menos nunca mais ninguém me viu

daquele jeito.

Fazia calor, eu me lembro, havia muito mosquito

e vagalumes à noite. 

E eu era sonâmbulo, uma vez mijei nas cortinas de veludo

da minha tia, e acordei numa cama que não era minha.

Quis muito ser triste mas não consegui.

Quis muito ser jogador de futebol mas não consegui.

Alguém ainda escreve cartas ? 




 




terça-feira, 16 de julho de 2024



                   o amor não tem idade, nem juízo





O amor não tem idade,

é o que se diz.

Juízo, muito menos.

E quem sou eu para duvidar ?


Logo eu

que do amor tantas vezes desdenhei,

ei-lo que desponta,

em plena madureza,

para me humilhar.

E glorificar.


Pois que assim seja, que desta vez,

sem receio nem pejo,

não serei tolo de ignorar 

o que a vida tem de mais belo.


Sim, o amor não tem idade,

floresce a qualquer tempo e dispensa

formalidades. 

Tudo o que requer é ser correspondido.

Às vezes nem isso.

Quando o amor acontece, o juízo desaparece.




 



segunda-feira, 15 de julho de 2024



                     o busílis





O busílis é que a gente está sempre querendo 

que a vida 

seja o que não é. 

Incluindo as pessoas.

Principalmente as pessoas.

Até parece que não aprendemos nada com o tempo.

Que o que une, separa.

Que ninguém deveria querer tanto.

Para não se decepcionar.

Ninguém merece estar num pedestal.

Muito menos num altar.

Exceto Cristo, mas a que preço...


Todo o possível aspira a farsa.

Desejo e esquecimento

se diluem em monólogos não cumpridos.

O futuro é um tiro no escuro.

A dourada existência é um mito acalorado e violento.

A violência de cada dia abantesma revoltados e ludibriados.

Jazigos recheados de vida procriam flores vazias.

Sem casa e sem asas, os filhos do logro

esquecem quem eram.

Para ter o que não podem.



 





domingo, 14 de julho de 2024



                        o porto

    



Os guindastes do porto se movem

como letárgicos dinossauros.

Caminhões fazem fila nos pátios imensos,

numa procissão que se repete religiosamente.

Containers e mais containers de insumos de toda natureza

são carregados e desovados

por navios de todas as bandeiras.


O maior porto da América do Sul fervilha.

Tudo é superlativo, gigante, nos quase vinte quilômetros

de seus terminais.

O trabalho é ininterrupto. Dia e noite os estivadores

se revezam na árdua tarefa de carga e descarga.

Já foram em bem maior número e o trabalho

mais estafante e perigoso.

Hoje os sofisticados equipamentos e guindastes

dão conta do mais pesado.

Mas, mesmo assim, são eles que dão vida ao porto,

como um exército de formigas

que mantém tudo funcionando.



  

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