domingo, 23 de fevereiro de 2025


                             à margem de mim




Passei a vida à margem de mim mesmo.

Desperdicei meus parcos talentos por falta de discernimento

e inteligência emocional.

Falhei como filho, marido, pai.

Cometi todos os pecados possíveis, só na matei, que eu saiba.

Meu legado se resume ao básico, não fiz nem deixo nada 

para a posteridade. 

Pouco ou quase nada me resta dizer.

Apenas que nada lamento - e nem poderia - nem me julgo

melhor ou pior que ninguém. 

Sou o que sou. 

Fui o que fui.

"Sei a verdade e sou feliz", como diz Fernando Pessoa

através de seu mestre, Caeiro.






 








                             ranhuras





Tudo se faz de lutas e esperas.

O clamor das mágoas irrompe com furor malsão.

O que fica subentendido se modifica na goela dos aleijões.

As conexões da alma dão luz as coisas ausentes, o que não falta 

é munição para o assalto avant-garde.

Truques, armas, blefes : arsenal do mais fino trato

remonta à sílex afiado.


Hoje e sempre, rompe-se o lacre das carências múltiplas.

O gosto pelo chiste encarna o discurso de ódio,

enquanto o poema se deixa consumir por resmungos.

O texto sem ranhuras viola o espírito das letras, 

subvertendo o canto do sabiá,

o pulo do gato,

ao que isso nos levará ?


Lampejos de remansos revolvem a fundura dos poços.

Permeiam a luz do fim do túnel, reprimem, regridem,

distorcem, 

eludem cavalos de Tróia, mixórdias em banho maria,

ah, quem dera achar o perdido,

sem pecha, sem história.

Ó, pai, ó glória !

Louvado seja Esdras, a cada vitória. 


sábado, 22 de fevereiro de 2025


                    monstro de onze cabeças



Habita entre nós um ente antigo e monstruoso,

que vive de devorar as próprias entranhas

com a fome insaciável dos chacais.


Onipresente, infunde medo e asco ante o seu reinado

de obscuro despotismo, 

camuflado por poderes corrompidos e arbitrários.


À maneira dos tiranos, arvora-se de legislador, juiz

e carrasco, perseguindo e punindo a seu bel prazer, 

sem que nada nem ninguém lhe faça frente.


Monstro de onze cabeças que, a exemplo da Hidra de Lerna,

clama por um Hércules capaz de decepá-las todas

de um só golpe.


* Inspirado no poema Uma Criatura, de Machado de Assis.




                      a garota do job 





Amo a menina que não me ama.

Age como se eu não existisse.

Ignora meu olhar faminto.

Passa e nem olha para o lado,

enquanto sofro calado.

Às vezes penso em algum abordagem ousada.

Fazer alguma proposta obscena.

Vai que ela seja do job...



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025


                       contumácias




 


Eu vejo as nuvens que se movem

em cada manhã de beleza ultrajada.

O que sobra de um tempo feliz encontra o seu lugar,

sem meta nem revolta. 

Dispo o meu disfarce, visto a carapuça, 

agora que todos os equívocos pilham-se

dissecando o recalcitrante sonho inventado.


Procuro a paz que não me procura.

Abraço a vida que preenche o meu vazio

iluminado em contumácias. 

Dos desejos não saciados do que não vivi, o pouco

é muito.

Onde a beleza é áspera e o coração um poema inacabado, 

invento afetos que resumem minha vida.








                                vazio




Tua indiferença

já não me machuca.

Assumo o vazio que me circunda.

Para que o nada me preencha.



                               puta velha




Nada acaba quando termina.

Vivemos de esperar o que não chega.

O que nos antecede vive burilando o coração

sem tê-lo.

Não há pressa na delicada praxis dos afetos.

Saneadas de calma e de luz, as histórias se repetem

sem acabar, revestidas

das mesmas incertezas e angústias.


Começo, meio e fim.

Antes, durante e depois.

Entre o princípio e o epílogo,

tudo se ajusta e desconjumina.

A vida é uma puta velha 

em traje de gala.





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