quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

                         as coisas não ditas




As coisas não ditas são as que permanecem.

Ficam, assim, hibernando, maturando,

soterradas,

até que um dia afloram.

Ou não.

Morrem levando consigo seus segredos,

as coisas não ditas.


Refúgio ou hospedeira, a verdade imagética 

abriga o desconhecido.

Reinventa colheitas, paisagens.

A fim de tornar mais palatável 

as coisas humanas mais ordinárias.



domingo, 23 de fevereiro de 2025


                             à margem de mim




Passei a vida à margem de mim mesmo.

Desperdicei meus parcos talentos por falta de discernimento

e inteligência emocional.

Falhei como filho, marido, pai.

Cometi todos os pecados possíveis, só na matei, que eu saiba.

Meu legado se resume ao básico, não fiz nem deixo nada 

para a posteridade. 

Pouco ou quase nada me resta dizer.

Apenas que nada lamento - e nem poderia - nem me julgo

melhor ou pior que ninguém. 

Sou o que sou. 

Fui o que fui.

"Sei a verdade e sou feliz", como diz Fernando Pessoa

através de seu mestre, Caeiro.






 








                             ranhuras





Tudo se faz de lutas e esperas.

O clamor das mágoas irrompe com furor malsão.

O que fica subentendido se modifica na goela dos aleijões.

As conexões da alma dão luz as coisas ausentes, o que não falta 

é munição para o assalto avant-garde.

Truques, armas, blefes : arsenal do mais fino trato

remonta à sílex afiado.


Hoje e sempre, rompe-se o lacre das carências múltiplas.

O gosto pelo chiste encarna o discurso de ódio,

enquanto o poema se deixa consumir por resmungos.

O texto sem ranhuras viola o espírito das letras, 

subvertendo o canto do sabiá,

o pulo do gato,

ao que isso nos levará ?


Lampejos de remansos revolvem a fundura dos poços.

Permeiam a luz do fim do túnel, reprimem, regridem,

distorcem, 

eludem cavalos de Tróia, mixórdias em banho maria,

ah, quem dera achar o perdido,

sem pecha, sem história.

Ó, pai, ó glória !

Louvado seja Esdras, a cada vitória. 


sábado, 22 de fevereiro de 2025


                    monstro de onze cabeças



Habita entre nós um ente antigo e monstruoso,

que vive de devorar as próprias entranhas

com a fome insaciável dos chacais.


Onipresente, infunde medo e asco ante o seu reinado

de obscuro despotismo, 

camuflado por poderes corrompidos e arbitrários.


À maneira dos tiranos, arvora-se de legislador, juiz

e carrasco, perseguindo e punindo a seu bel prazer, 

sem que nada nem ninguém lhe faça frente.


Monstro de onze cabeças que, a exemplo da Hidra de Lerna,

clama por um Hércules capaz de decepá-las todas

de um só golpe.


* Inspirado no poema Uma Criatura, de Machado de Assis.




                      a garota do job 





Amo a menina que não me ama.

Age como se eu não existisse.

Ignora meu olhar faminto.

Passa e nem olha para o lado,

enquanto sofro calado.

Às vezes penso em algum abordagem ousada.

Fazer alguma proposta obscena.

Vai que ela seja do job...



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025


                       contumácias




 


Eu vejo as nuvens que se movem

em cada manhã de beleza ultrajada.

O que sobra de um tempo feliz encontra o seu lugar,

sem meta nem revolta. 

Dispo o meu disfarce, visto a carapuça, 

agora que todos os equívocos pilham-se

dissecando o recalcitrante sonho inventado.


Procuro a paz que não me procura.

Abraço a vida que preenche o meu vazio

iluminado em contumácias. 

Dos desejos não saciados do que não vivi, o pouco

é muito.

Onde a beleza é áspera e o coração um poema inacabado, 

invento afetos que resumem minha vida.








                                vazio




Tua indiferença

já não me machuca.

Assumo o vazio que me circunda.

Para que o nada me preencha.



                               puta velha




Nada acaba quando termina.

Vivemos de esperar o que não chega.

O que nos antecede vive burilando o coração

sem tê-lo.

Não há pressa na delicada praxis dos afetos.

Saneadas de calma e de luz, as histórias se repetem

sem acabar, revestidas

das mesmas incertezas e angústias.


Começo, meio e fim.

Antes, durante e depois.

Entre o princípio e o epílogo,

tudo se ajusta e desconjumina.

A vida é uma puta velha 

em traje de gala.





domingo, 9 de fevereiro de 2025




semeadura






Nossas dores são algemas incrustadas de feridas catatônicas. 

Nossos amores contam seus passos envoltos em trapos amorfos.

O que há para fazer salvo viver como se não houvesse

outra vida ?

Incógnito, o coração indomável cavalga hipocampos de trânsfuga.

O presente, um halo da eternidade, se agarra ao póstumo acerbo 

de potestades. 

Sonhos drenados repartem os silogismos do abandono

em ligas de tungstênio. 

No horizonte precário do existir, passam com atraso os cortejos

mancos das elegias.


Meus olhos transformam tempestades em escamas, como

um rio que bebe as nuvens.

Me defendo das imposturas da fé deixando para trás 

a inconsútil fratura da alma.

Livre da falsa auréola das virtudes, mijo bazófias politeístas. 

Não sou nem sombra do que fui, mas meu sêmen cansado 

ainda faz filhos.


 




 


                             o pecado original





De dor a humanidade entende.

Sentir dor, infligir dor, sina recorrente 

de um mundo doente.

De gente que mata, tortura, padece de todos os males, 

que olha com desdenhosa piedade 

o mal que semeia.

É sempre o mesmo ritual macabro que nunca passa,

diante de um deus de pedra que legitima todas

as formas de morte.



Tudo remonta ao pecado original.

Que condenou a humanidade a penar eternamente.

Somos paridos com o mal no coração.

O amor acaba mas o ódio não.

Que o diga os filhos do Tamerlão, do Alcorão.

Proibidos de amar quem não professa 

a mesma religião.


O mal está em toda parte.

Os bons pagam pelos maus.

Destruímos, torturamos, matamos, inocentes 

como crianças que não sabem o que fazem.

"Perdoa, pai, eles não sabem o que fazem", atestou

o Crucificado, fiador de uma doutrina de perdão

que anula o passado. 

De um mundo perverso, pervertido, 

erigido à ferro e fogo,

que não merece ser perdoado.





 



 







 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

                  

                 último ato




Vem de longe o paradoxo em que me afundo. 

Encurralado no círculo vicioso da vida, me desterro 

do destino traçado pelo livre-arbítrio.

O espelho partido do tempo decifra a máscara definitiva, 

prenhe de insólitos disfarces e provisórias certezas.

Pairando sobre as verdades que umedecem 

a sobrevida sobranceira. 


Meu breviário de desatinos apascenta o coração.

Madureço lúcido, lúdico, 

hóspede do tempo,

passageiro do mundo,

liberto do amor que cresce para dentro.

Que importa se tudo é fugaz ?


Pensamos diferente mas somos os mesmos animais.

Pervagando sufrágios e presságios celestes.

O amanhecer sem futuro perscruta o repentino despertar,

para que o silêncio amoroso acolha

o souvenir das brevidades.

Meu ego em frangalhos encena o último ato nessa terra

que só fez amar-me.

Do bulício do mundo me aparto em paz comigo mesmo.

A solidão, a chuva e os caminhos percorridos ornamentam 

meus últimos passos.

Para assim ser esquecido. 

Como se não tivesse existido.








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