sábado, 31 de agosto de 2024


             o alfabeto dos sonhos




Outro recomeço, digam-me, sábios de plantão,

por onde começo ?

Como trocar o ausente pela existência do que

ainda não existe ?

Se o que mal terminou ainda é banquete farto 

para lobos e hienas ?

Digam-me como costurar as linhas do tempo 

com as agulhas do perdão ?

Como convencer as sepulturas a reviver os mortos ?

Como reconstruir as pontes queimadas,

convencer as mãos da luxúria a soltar às rédeas ?

Como trocar o que fui pelo que quero ser ?


Recomeçar é mais difícil do que começar.

Não há mais margem para erro.

O barro dos recomeços é feito de despojos delicados

e cadáveres perfumados.

A busca por um lugar em lugar de outro é como convencer

o relâmpago a dançar a dança do trovão ( segundo o poeta

Adonis ) *.

No entanto, é preciso recomeçar. 

Convencer-se de que é capaz de reescrever

sua história.

O alfabeto dos sonhos não se desaprende.



* Ali Ahmad Said Esber, poeta árabe.



 



       assim tão pouco, e muito !



Tenho fé mas não creio.

Creio mas não confio.

Não faço mais parte dessa trama.

Ainda durmo de pijama e mesmo já não crendo,

rezo antes de dormir.

À quem rezo então ?

Sei tão pouco de mim, como vou saber ?

Desentendo tudo o que aprendo.

Mas já me dei conta que é difícil morrer

quando se quer morrer.

Do contrário, já teria partido desta para melhor (?).

Deus sabe o que faz, é o que dizem.

Assim tão pouco, e muito !





sexta-feira, 30 de agosto de 2024



                     novos tesouros





De tudo e por tudo,

o esquecimento é uma benção.

Mesmo os melhores dias, convém não por

acima dos demais.

Sob pena de estabelecer padrões fora do normal.

Por melhor que tenha sido o passado,

o presente é tudo que há.

E em não sendo possível voltar no tempo,

o que nos cabe é descobrir novas alternativas,

novos tesouros.

O sol sempre brilhará para que tiver olhos

para ver.

Se tudo hoje é enfadonho e vulgar, a quem culpar ?

Para quem esqueceu de esquecer, a sensação

do provisório fustiga e atormenta.

Dependente do que foi, em detrimento

do que poderia ser.


 

quinta-feira, 29 de agosto de 2024




                   o cara ou coroa da vida





Falta-nos conhecimento

Falta-nos discernimento

Falta-nos bom senso

Falta-nos altruísmo

Falta-nos honestidade

Falta-nos lealdade

Falta-nos amor ao próximo

Falta-nos tudo

Em maior ou menor proporção

Conforme as circunstâncias

Ninguém é melhor que ninguém

Quando a vida nos põe à prova

Tudo pode acontecer

Coragem ou covardia

Dignidade ou baixeza

Vida ou morte

Sorte ou azar

São faces da mesma moeda

No cara e coroa da vida

Deus lava as mãos.



terça-feira, 27 de agosto de 2024

                

                 realidade e fantasia *

                           


Maior é sempre a dor

de não saber por quê dói.

Se não é por amor

Se não é por desamor

Por que dói ?


                Como era azul e grande 

                o meu sonho.

                Realidade e fantasia passaram 

                em direções opostas.

                Lentamente, o sonho sumiu,

                caiu no esquecimento,

                enchendo minha alma 

                de uma onda calma de sono.


* Reescrevendo Verlaine



                sentimentos que procuram sentimentos





A gente não faz ideia da força que tem.

Não tem noção do que é capaz, quando posto à prova. 

Não só em função do prodigioso instinto

de sobrevivência,

presente em todas as espécies, mas, sobretudo,

pelo poder imanente dos sentimentos.

A força de querer, amar, odiar, a tudo transcende. 

Na criatura que se divide em proezas e utopias.

Na fera reprimida e contida por grades seculares.

Naquele que luta e não se entrega,

que se revolta e se enternece,

que ri e chora, 

que educa e doutrina,

que aconchega e repudia, com a mesma intensidade.


Nada é mais poderoso do que sentimentos

que procuram sentimentos.

Do sublime que acalanta e consola.

Do toque que inunda e remexe os sentidos.

Da compaixão que humaniza e aproxima as criaturas.

Da paixão que alucina e desencaminha.

Do amor gratuito e improvável, como

de uma prostituta que dá de graça.  







            monstros bondosos




Contra a correnteza, o fundo iluminado dos becos escuros 

perturba as baleias. 

Claustros de cinzas submersas dispersam

o oceano de corpos.

Infusões de sol gelatinoso perseguem os cardumes

como setas incandescentes.

Grãos perpétuos incrustam as asas verdes da esperança.

A verdade persuade como redes secando ao sol,  

enquanto saboreia o paladar da discórdia.

O desencanto começa com um bom dia e monstros

bondosos.

Ter um motivo nobre para viver é um luxo para poucos.

A maioria apenas vegeta.

Onde há esperança, a razão dá de ombros.

Quem julga não se contenta com pouco.

As postulações sem nexo não temem as aparências.

Por descuido, amor e sofrimento imolam-se

em secreto sacrifício.  

Os predadores de si mesmos são meus vilões favoritos.









 

domingo, 25 de agosto de 2024



                    a hora de apaziguar o coração





Não encontrar-se na ambígua realidade,

e de súbito, ver-se

pacificado pela boca dos mortos.

Na interminável rigidez que abençoa as uniões,

a astúcia terrestre restaura as espigas da noite.

Heranças de barro acumulam velhas desditas.

O que acontece lá fora endurece o coração estigmatizado. 

A verdade sem angústia veste o nu e o invisível.

Irredutível como a vida que regenera a vida, a incessante

maresia santifica o dia.

A cura sem remédio inverte a tristeza das mentiras.

Onde não há ciladas o acaso trama a flor sobre o jazigo.

O gosto do desgosto muda-se na lama, para que a vida

se abra e reparta. 

Embora cego, o que não falta ao amor é olfato e tato.

Cada coisa fora do lugar atrasa o ritmo do remo.

Folhas irisadas pela chuva decifram a ira que condensa.

A tudo que passa, entrega-se um pouco de nós mesmos.

As vagas incessantes da memória se opõe à cegueira

fútil da felicidade. 

Sem acabar, nada recomeça.

A hora de apaziguar o coração é sempre.



sábado, 24 de agosto de 2024



                                o casulo da vida





Desejos nunca satisfeitos fecundam 

o fruto proibido das paixões,

arrancando do precário convívio as enclausuradas

distrações.

O ócio, o vício, o cio, se recriam, a fim de barrar 

o caos circundante das privações. 

Tantas coisas retiram-se de não ser, sem ao menos

terem sido.

Dobras do inquieto futuro escondem o incognoscível

parto das expectativas.

No qual o próprio coração repousa sob a pressão

dos interesses contrariados.

O sentir disfarçado consola e ajuda a desejar os desejos

entrelaçados.

Quem se atreve a libertar-se do casulo da vida,

e como as libélula, ter asas, voar ?





                     o que eu sei da vida




 


O que eu sei da vida ?

Nada sobre passar fome.

Não ter um teto.

Não ter uma família.

Estudo.


Nada sobre ser discriminado.

Perseguido.

Injustiçado.


O que eu sei da vida não me torna

melhor que ninguém.

Muito menos colocar nos ombros 

qualquer tipo de cruz.





                      anjo caído





Da vida verdadeira me distancio cada vez mais.

Tudo passou ligeiro demais.

Tempos de uma mundo mais manso vão ficando

inexoravelmente para trás.

Sinto a vida toda evadir-se,

como se nada mais valesse a pena.

O passado exilado num tempo sem dor, 

sem sabor.

Tempos em que os velhos morrem mais tarde,

e os jovens mais cedo.

A existência sucateada 

pervagando num beco sem saída.

Não sei se vivo ou vegeto.

O caos interior encontra e distribui significados

em ruínas antigas.

Fui mal-amado, traído.

Amargo minhas penas como um anjo caído. 



quarta-feira, 21 de agosto de 2024


                             o pacote




É fácil se iludir.

Estamos sempre imaginando coisas. 

Sonhando acordado.

Nada mais humano do que dar asas à imaginação.

Acreditar é preciso, para manter um mínimo de fé

na humanidade.

Decepção, frustração, desengano, são parte do pacote.

Não há quem não conheça o sentimento.

Não há quem não tenha sofrido por acreditar, por se iludir

com promessas, aparências.

Não há quem não tenha sido traído.

Menos mal se de uma forma de outra, compensou.

Porque o melhor ser humano que jamais existiu

foi traído com um beijo.


 



                 


         amor e ódio nascem do mesmo ventre



O mundo das vastas coisas percorre o ciclo

das mudanças apoiado em muletas.

Rios sem margens ignoram os conflitos.

Ventos opostos removem o pó das religiões de antanho.

Colheitas fora de época suprem a ausência do amor.

Paquidermes e roedores dormem acordados, para não serem

surpreendidos.

Sob o mesmo teto as irmandades se deterioram.

Trevas fraternas coagulam o sangue da infância.

Entre a língua ferina e a realidade, os párias se contentam

em caminhar às cegas.

A Terra Santa ignora a aflição dos apátridas,

enquanto a intolerância salmodia a redenção dos mártires. 

O bom e o justo desencaminham o certo.

Não esquecer de lembrar alimenta o afeto perdido.

Existir por existir requer dons especiais.

Aquiescências são sempre bem-vinda, desde que

com mãos atadas.

Países e povos se movem em direções opostas, sacudidos

por seus sismos.

Amor e ódio nascem do mesmo ventre.

Às vezes não saber é uma benção.







domingo, 18 de agosto de 2024


                           a melhor terapia



tela de Gunter Teubner
 


Minha felicidade vive de anacrônica sincronia.

Escrever é minha melhor terapia.

A inspiração se embriaga de vã filosofia.

Enquanto o vazio ancestral se amplia. 


A dualidade não admite reveses.

A vida passa dinamitando pontes.

Renovo as crenças reciclando o inominado.

Humilde e exaltado, por via das dúvidas

acendo uma vela a Deus e outra ao diabo.







Ninguém me falou.

Não foi de ouvir dizer.

Não foi com um conhecido, um vizinho,

um parente distante.

Aconteceu com a pessoa que eu mais amava.

E da qual, ironicamente, acabara de me separar.

E mais ironicamente ainda, por iniciativa dela.

Por razões que não vem ao caso lembrar.

Mesmo porque por motivos não muito diferentes 

daqueles pelos quais todo mundo se separa. 

Eu a vi perdendo as forças, se desfigurando, 

ainda tão moça, acompanhei sua luta,

seu sofrimento, vi o seu apego a vida aos poucos 

transformar-se numa entrega compassiva e resignada,

estou certo de que até o último momento seguiu

acreditando no milagre da cura, assim como eu, nunca

vou esquecer de como comemoramos ao sair o resultado

da ressonância no cérebro e nada acusou, mas o câncer

já havia se espalhado, e poucos dias depois ela veio a falecer,

depois de duas semanas internada, eu ali a seu lado, quis

o destino que coubesse a mim cuida-la nas últimas

semanas de vida, os mais tristes e singelos que vivi. 

Singelos porque nunca estivemos tão próximos, nunca

a amei tanto como naqueles últimos dias de sua agonia.

Faz dois anos e meio que ela se foi, e ainda não me conformei,

sua lembrança está sempre comigo, volta e meia ainda choro 

como agora, sonho com ela, 

já não me culpo nem a ela pelo triste desfecho 

de nosso casamento, ambos 

erramos, e a vida encontrou uma maneira muito dura e cruel

de nos punir, e de nos reaproximar.

O que de certa forma ameniza o interminável 

suplício de sua perda.






 

sábado, 17 de agosto de 2024

                         


                           antigos amores




O que resta dos antigos amores ?

Lembranças singelas e ao mesmo tempo amargas.

Longos anos de dolentes alegrias, afinal consumidos

pelos costumeiros desatinos.

A arte da convivência desconhece os desejos aprisionados.

O amor é um animal que pede aconchego

enquanto arma o bote.

Nem toda sabedoria do mundo é capaz de mantê-lo

sob controle.

Oscila, feliz e atormentado.


O que resta dos antigos amores cala-se

em reverente comiseração ante 

a ilusão de ter sido tudo.

Somos vários e únicos, mas igualmente

despreparados para se doar, como o amor exige.

E nem sempre há tempo para o aprendizado.

Arrefecida a paixão de tantos ardores, há que encontrar

outras formas de compensação.

Sem o quê o amor aos poucos se esfacela.

E o que fica, às vezes, nem ao respeito se dá.






                                  movimentos




             

O primeiro movimento

transborda espólios preciosos e intransferíveis.

O intangível vai ao encontro do que se afasta, desviando

da alegria.

Façanhas com palavras gestam exegetas banais.

A ordem desregrada do progresso desanda o processo.

O gosto postiço dos dias sonha com sinecuras virtuais.


O segundo movimento

surge em meio ao invisível, encaixotando

corações que não se deixam apaixonar.

Acima e abaixo do horizonte, vigílias sentimentais

debatem-se em contínuo desalinho.

Edificantes e inconclusas.


O terceiro movimento

engole sapos e entope pias.

O pavor da vida embosca ciladas.

Sem que ninguém saiba por que, o verso-utopia 

tece loas a miséria dos cânticos.

Raiará o sol

antes que o dia morra ?


O quarto movimento 

segrega caçadas humanas e prisões altenativas.

Cogumelos de fogo ornam a dissecação do hipocampo.

Beijos de amianto conflagram a lonjura das ausências.

A história se repete contra a verve sibilina. 

O dito pelo não dito sempre prevalece.


O quinto movimento

desconhece o vômito dos oceanos.

Almas famintas encalham na areia à procura de conquistas.

A ronda noturna da polícia enquadra a ira dos postes.


O sexto movimento

abriga os desejos não recuperados, súplicas

por vontades algemadas, prazeres cínicos, amores aviltados. 

A deformidade da dor dispensa analgésico.

O sexo no cimento desfigura a paisagem.

A multidão solitária dorme sob o batuque ensurdecedor 

do silêncio.

Ninguém mais ama, apenas tolera.


O sétimo movimento

acredita na força do zero à esquerda,

na nulidade que faz a diferença

quando, de repente, 

crava um punhal no oceânico nada,

e planta ferraduras no normal.


O oitavo movimento

vem à reboque da derrocada, enganado 

pelo escuro, a barriga vazia mastigando a boca,

entre vacilações perpétuas que espantam

as cosmogonias mal-ajambradas.

Aldeia global, que solidão !

O relativismo filosófico é a pauta do dia.

Digressões a mais, conjecturas à menos.


O nono movimento

confia no mal, na cegueira da luz, no diploma

dos impostores, nos caminhos tortos,

na vileza dos astutos, 

nos que legislam em causa própria, nos que mentem

por uma boa causa, nos trambiqueiros, farsantes,

caloteiros, adúlteros, 

em você,

irmão, irmã, 

meu igual, meu antípoda,

a quem esses versos dedico.


 




                          todas as cores da paleta




quando você se permitir

voar acima dos obstáculos

deixar-se guiar pela intenção dos olhos

aceitando a proposta das lágrimas suspensas

sendo o epicentro de si mesmo

abrace a sua verdade triste

faça valer todas as cores da paleta

e veja o sonho tornar-se realidade.






                   podem me chamar de proesia



Cada coisa que transpõe o conhecimento transforma

o entendimento.

Os esgotados caminhos se renovam, quando

a compreensão encontre o seu uso.

A procura de novos amanhãs remonta às origens 

das adegas libertárias.

Contrapondo-se aos dias que se foram, a memória litiga

em causa própria.

A límpida manhã se desforra transpondo os falsos

meridianos.

O medo da claridade mantém-se acordado, ensimesmando

 o confuso aprendizado.

Velhas vontades e amizades gastas impelem as efabulações

sem valor.

O caminho do pai não é o mesmo do filho, por mais

que se diga o contrário.

Quando o dia demora e a noite não chega, não adianta

ter pressa.

O que não se cria, se copia.

Nem prosa, nem poesia : podem me chamar de proesia. 




 





quarta-feira, 14 de agosto de 2024


                               a verdade tem mil caras




De qual verdade estamos falando ?

A minha, a sua, a dos outros ? Meras palavras

permeadas de enigmas.

Verdades, nada mais enganoso.

Na boca do juiz venal.

Na liturgia obscura dos credos assassinos.

Na versão dos farsantes, vigaristas, demagogos.

A verdade de cada um se sobrepõem ao direito, a justiça,

a própria liberdade.

A verdade de mil caras.

A verdade de leis retrógradas.

A verdade de ditadores, déspotas, mentores, gurus

de araque.

A verdade da História, dos mitos, das lendas,

dos livros sagrados.

A verdade do amor.

Tudo é discutível.

Tudo muda conforme as circunstâncias.

Tudo que começa e acaba está em constante

transformação.

Eu não sou o mesmo de ontem.

O meu amor não é o mesmo de ontem.

A morte é a única verdade absoluta.

Até que se prove o contrário.




                                   a arca de Noé



Um iceberg flutua emocionado

no Mar do Norte. 

À procura, quem sabe, de um lugar que não

lhe pertença.

O enigma glacial bafeja novos ares.

Sob o brilho monstruoso das ruas londrinas,

poças d`água sonham com James Bond.

O cenário desfigura-se em rotas antigas.

A cronologia acústica remonta ao chifre dos vikings.

Meteorologistas piram, antevendo o naufrágio do Tâmisa.

Sem palavras, o monolito interrompido descreve o secreto

arco do passado.

Não quero a minha volta o que a realidade não suporta.

O entendimento não alcançado derrete a metonímia

das metáforas.

O degelo iminente requer novas arcas de Noé.

Em que os bichos querem ser humanos.





terça-feira, 13 de agosto de 2024



                             olhares familiares



Não se distraia.

Não se perca.

Neste lugar de uterinas morfologias, 

a linguagem crepuscular 

antecipa a cegueira iluminada de sombras.

O centro oco fecha-se sobre si

como uma doença terminal.

As estações sobrepõem-se como gigantes irresolutos.

Tu te reconhece em mim com virtuosas ignorâncias.

Não nos julguemos, pois.

O sentido do inviolável abastece-se de incoerências.

Olhares familiares às vezes é tudo o que precisamos.

Precisando ou não.




                        horizontes sem horizontes



Lá pelas tantas

vestiremos as roupas siderais ( funérias ?)

para comungar o maior dos enganos.

Não será um adeus, apenas um até breve,

até que os sepulcros marejem carinhosos silêncios.

Todos os passos marcham para horizontes

sem horizontes. Tão próximos

e tão distantes como a falta de amor.

Dia virá em que nada mais importará, além

dos itinerários hipotéticos escondidos nos guarda-roupas,

pendurados nos portais do moderno-ancho-mundo.

De cujas sarjetas imundas postulamos a vida eterna.







domingo, 11 de agosto de 2024




                    sei do amor por ouvir dizer





Sei do amor por ouvir dizer.

Sérias e fundas controvérsias cercam o assunto.

Há quem fale maravilhas e diga que não consegue

viver sem.

Já outros fogem dele como o diabo da cruz.

Donde se conclui que não há como saber

sem experimentar.


Sei de ouvir que o amor é bicho arisco e ardiloso.

Que pode ser doce como fel.

Cego entre luzes e faróis.

Pode ir do tudo ao nada do nada, enquanto sangra

ou joga tênis.

Não obstante degenerar-se com o tempo, 

regozija-se e multiplica-se até a exaustão, 

enquanto adestra os instrumentos de possessão.

Como isso pode ser bom, me diga você, sabichão ?


De minha parte, prefiro pegar gripe, gonorreia, câncer.

Qualquer coisa é melhor que ficar à mercê de algo

que pode te levar

do céu ao inferno, sem nem mais nem por quê.

Amar, está na cara, é para os fortes e destemidos.

Para os carentes, os caretas que ainda acreditam em 

balelas como fidelidade e baboseiras como "juntos até

que a morte nos separe".


Sei do amor por ouvir dizer.

Em vão, tentei não me submeter.

Como se o coração não fosse

mais cego e surdo que uma porta. 



















                            oferendas





A cruz não se opõe a novas trevas.

Ancestrais desígnios esmagados no nascedouro

saúdam os recém-nascidos.

Legiões de parasitas e pederastas fazem as honras da casa.

O desconhecido veste o manto roto das penitências.

Oferendas de lábios e úteros metálicos contornam

a solidão de arame farpado.

Não há para onde fugir dos campos minados de Alquds.

O tumor da terra desconhece a compaixão.

O Oculto dá-se ao luxo de ficar calado, enquanto

renova o pacto com o demônio.

O que dizer às crianças sobre o mundo caduco

que as espera ?



 

 

sábado, 10 de agosto de 2024

                        

                         carnificina




O mundo é um grande moedor de carne.

Milhares de rebanhos, cardumes, espécies, são

dizimados todo santo dia.

De todas as idades.

De todas as formas.

Degoladas, esfoladas, trituradas, descamadas

sem dó nem piedade.

Rios de sangue e montanhas de ossos dão testemunho

dessa atroz carnificina.

O apetite da espécie humana é insaciável.







                     o sêmen do mal



 
O mal é o sêmen de mirantes ensandecidos

muros perfumados

antros suicidas

grotas que arrotam morte.

Não há hipótese de uma nova ordem.

É sempre o mesmo furor e sua beleza estonteante.

O Inferno parecendo o Paraíso, e o Paraíso parecendo

o Inferno.

Nunca se sabe qual é o melhor ou o pior.

Atrocidades não têm credo, raça, preferências.

Onde cresce o fungo da discórdia e da intolerância

jaz o mausoléu das crenças.

A ordem que rege a humanidade gira em torno de abismos.

Mutirões de eleatas removem montanhas que desatam nós,

com a fé de anjos que perderam as asas.

A civilização se rende à sua própria sorte.

Como um moribundo que não morre nem se cura. 








sexta-feira, 9 de agosto de 2024



                             aptidões





Sou bom em tudo aquilo que não serve para nada.


                  Não brigo com os fatos.

                  Barganho.


Uma das (poucas) vantagens de ser pai na velhice

é saber que não terá tempo de ver o produto final.


                A vida só se revela totalmente

                quando você percebe que foi enganado

                por todo mundo.


O que nos habilita ao sucesso e ao fracasso

é basicamente a mesma coisa.

Aptidão.


                O santo e o herege são igualmente degenerados,

                por motivos opostos.





quinta-feira, 8 de agosto de 2024



                          ancestralidade




 

 

Um manto de veludo cobre a noite.

A lua chega de mansinho, procurando um lugar

para dormir.

As estrelas parecem derreter, confabulando

com o infinito.

O espaço abriga os ossos da eternidade.

O resto é luz 

transformada em travesseiros de sonhos.




 



                    emulações


                           tela de Agim Sulaj


A vida mortífera vê o túmulo de perto.

O tempo que passa eternamente é abundante e velado.

A morte passeia entre lobos e cordeiros, com 

os lábios calados em reverência à podridão da terra.

Todos carentes de qualquer coisa guardam segredos

nas profundezas.

Homens vidrados em mutilações apertam-se as mãos,

enquanto se ignoram. 

Onde não há esperança o céu respira feridas abertas.

O Oriente se vinga do Ocidente falsificando 

o sangue negro.

Até quando dormirá o Leviatã de Tanakh ?

O Muro da Lamentações zomba da verdade.

Sem testemunhas, o mundo converte paredes

e emulações réprobas em pensamentos.

Para que a humanidade rumine a paz.



quarta-feira, 7 de agosto de 2024


                          onde viemos parar ?





Decifra-me ou te devoro.

Deveria ser o lema de escrevinhadores metidos à poeta.

Tremem nas bases os infames sacrilégios à flor

mais inculta do que bela, após virar saco de pancada

no pantagruélico palco das redes sociais.

Da largata à barbuleta,

digo, da lagarta à borboleta, a realidade frondosa de teclas

monitores e-mails, imigra do Lácio,

deportando os devaneios e circunlóquios ( do lirismo

comedido ? ) ao pé das garatujas virais.   


Dos pináculos da Grécia antiga ao porrete no lombo

da gnoseologia, onde viemos parar ?

Para isso foram expulsos da Hélades os lafranhudos titãs

precursores do Grande Vate ?

Ora, direis, para quê ?

Embasbaquem-se os prelos virtuais ante

a prescrição do venerando vernáculo.



domingo, 4 de agosto de 2024


               o mal da minha cura





Não venha falar dos meus defeitos.

Você nem me conhece direito.

Nem faz a menor questão.

A sua opinião sempre prevalece.

Estando certa ou não.

Não se contenta com pouco.

Quer do bom e do melhor.

Não lhe tiro a razão.

É bom ter ambição.

Mas, veja lá, sem passar por cima dos outros.

Faz gato e sapato do meu coração.

Você sempre certa e eu sempre errado.

Já passou da hora de dar um basta.

Vivo me sentindo um bosta.

Assim não quero mais, não.

Não tenha mais idade para ficar ouvindo sermão.

Garota, vê se se enxerga.

Você é gostosa mas não é a única.

A oferta está maior que a procura.

Não queira ser o mal da minha cura.




                                  meigos dilemas





Não foi de repente,

como uma dessas fatalidades

que às vezes acontecem.

Não foi premeditado, programado, que juízo

e bom senso nunca foram o meu forte.

Simplesmente foi acontecendo.

Tão somente maturando, como a fruta, a idade, 

num repartir-se nunca aprendido

e aos poucos despovoado.


Vi o fender invisível da vida atormentado

por meigos dilemas.

Querendo tudo sem investir nada,

num abranger ególatra feito de sonhos turvos

e âncoras de espuma.

Meus restos ficaram pelo caminho

conjurando os passos erradios.

Para voltar a ser o que deveria ter sido.

Alguém mais íntegro e autoral.

Um homem que precisou perder-se para se encontrar.


O que ficou para trás enfim encontrou o seu lugar.

Como um rio subterrâneo que desaparece

no sumidouro do mundo.



sábado, 3 de agosto de 2024



                              a poeira do tempo



Há muitos caminhos

e um só destino. 


                 A poeira do tempo

                 dispersa os enganos.


Porque eu preciso contar o que vi

antes que me esqueça.


                  Velhas pontes.

                  Ruas vazias.

                  Casas abandonadas.

                  Surdos clamores.

                  A vida se desmancha

                  em turvos esgares. 


A beleza que encanta 

é a mesma que corrompe.


                    O pior de tudo é ver

                     e não entender.




                      o mais lindo sentimento


À Benício Berger, meu filho




Monólogos sem eco,

completamente fora de propósito,

pairam como sonhos de ourivesaria.

No relax das colheitas, eis que o amor circundante

urde o mais lindo sentimento

jamais sentido.

Inadvertidamente, como um cão que atravessa a rua apinhada

de carros.

Acalanto de água macia num rio hostil.

Caloroso incenso coalhado de azul.

Parnaso onde o brusco andar se amolda às febres e chagas.

E a própria oquidão espreita a clara inocência

do amor sem lonjura. 


Neste candor que tudo ignora,

me vejo como o avesso de um espelho,

em périplo desorbitado sem plano de fuga.

Quando te estreito nos braços, rebento inesperado

em tempos de crepúsculo,

sinto-me como se jamais fosse morrer.


Postagem em destaque

                           a tragédia humana Ideias pendentes pairam exauridas. Merencórias vilegiaturas louvam as singraduras equânimes. Su...